Nas ações trabalhistas ajuizadas por bancários, especialmente aquelas que buscam o pagamento da 7ª e 8ª horas como extras, um ponto crítico e, infelizmente, recorrente, tem chamado a atenção: a aceitação, por parte de alguns julgadores, da dedução da gratificação de função com base na cláusula 11ª da Convenção Coletiva de Trabalho (CCT) dos bancários.
Essa cláusula, que autoriza a compensação da gratificação paga anteriormente com os valores deferidos judicialmente, carrega um grave vício de origem. Sua aplicação, tal como está sendo aceita, configura o que chamo de verdadeira teratologia jurídica.
1. A Convenção Coletiva não pode subverter o Judiciário
A cláusula em questão pretende determinar previamente os efeitos de uma eventual condenação judicial, como se fosse possível a norma coletiva vincular o magistrado a uma determinada forma de julgamento. Trata-se de uma invasão de competência, pois somente o Poder Judiciário pode interpretar a lei e decidir sobre os efeitos da sentença, caso a caso, com base nos fatos e provas dos autos.
Ao aceitar tal cláusula, estaríamos permitindo que os instrumentos coletivos — elaborados por sindicatos e empresas — ditassem como o Judiciário deve julgar, o que fere diretamente o princípio da separação dos poderes previsto no art. 2º da Constituição Federal.
2. A violação da Súmula 91 do TST e o retorno ao salário complexivo
A jurisprudência consolidada do Tribunal Superior do Trabalho, por meio da Súmula 91, veda expressamente a criação de parcelas salariais que englobem outras verbas legais ou convencionais. Essa prática, conhecida como salário complexivo, é considerada nula.
Ora, se a gratificação de função é posteriormente reconhecida como indevida — porque o trabalhador não exercia efetivamente cargo de confiança, nos termos do §2º do art. 224 da CLT —, a tentativa de deduzi-la de valores devidos configura justamente a reintrodução do salário complexivo, ainda que de forma indireta.
3. A fraude no cargo de confiança e a nulidade da rubrica
Outro ponto crucial é o vício de origem. Se a gratificação foi paga com base em um cargo de confiança fictício ou fraudulento, estamos diante de uma violação ao art. 9º da CLT, que torna nulo qualquer ato que vise fraudar a legislação trabalhista.
Neste cenário, a rubrica “gratificação de função” perde sua natureza jurídica específica e deve ser requalificada como salário puro, com todos os efeitos decorrentes, inclusive a insusceptibilidade de compensação.
4. A natureza alimentar do salário e a proteção constitucional
Salário é verba de natureza alimentar e, como tal, goza de proteção constitucional (art. 7º, VI, da CF). A tentativa de compensá-lo ou deduzi-lo, especialmente quando decorre de fraude, contraria a lógica da própria Constituição.
É nesse ponto que o Tema 1046 do STF entra como importante baliza: ele reconhece a validade do “negociado sobre o legislado”, mas apenas se os direitos constitucionais e indisponíveis forem respeitados. Quando se ultrapassa esse limite, a norma coletiva perde sua eficácia.
Além disso, a aplicação da cláusula 11ª afronta o próprio conceito jurídico de compensação previsto no art. 368 do Código Civil. Isso porque, para que haja compensação ou dedução, é necessário que empregador e empregado sejam credores e devedores recíprocos, o que não ocorre no caso da gratificação de função reconhecida como fraudulenta. Nesse contexto, não se trata de créditos mútuos, mas de valores salariais devidos por força de decisão judicial.
5. Conclusão: não há espaço para a legalização da fraude
Aceitar a cláusula 11ª da CCT como instrumento de compensação da gratificação de função, após o reconhecimento judicial da fraude no cargo de confiança, é normalizar o desvio da lei, fragilizar a autoridade do Judiciário e colocar em risco direitos fundamentais do trabalhador.
É preciso reafirmar que nenhuma convenção coletiva pode autorizar a fraude, muito menos antecipar os efeitos de uma condenação judicial. A função da norma coletiva é negociar dentro dos limites legais e constitucionais, não acima deles.
Se você é advogado, bancário ou atua na área trabalhista, acompanhe meus artigos para mais análises sobre temas que impactam diretamente o direito do trabalho bancário. Vamos juntos fortalecer a legalidade e a justiça no ambiente corporativo.